Unilateralizações




Sempre que se nega as consequências e implicações de atos e desejos são construídas responsabilidades, mentiras e disfarces (imagens e máscaras) como forma de lidar com o outro, consigo mesmo e com as próprias limitações, dificuldades e vícios.

Tudo que se faz ou não se faz implica em alguma coisa, desde que somos enquanto relação com o outro, consigo mesmo e com o mundo. Eternizar e manter posicionamentos como absolutos é mais um faz de conta destruidor. Todo relacionamento gera posicionamento, gerador de novos relacionamentos indefinidamente. Mesmo nas necessidades biológicas ou orgânicas isso é visto: excesso ou falta tanto alimentam quanto adoecem. Dormir é descansar e é também sedar e alienar a depender da intensidade com que é exercido. Comer sustenta e destrói sob forma de inúmeros desequilíbrios metabólicos: dos açúcares às gorduras até a carência ou excesso de tais substâncias. O mesmo se dá com as satisfações e insatisfações sexuais.

Tudo que problematiza, soluciona, se enfrentados e configurados seus pontos de interseção, de prisão e amarramento.

Tudo que ajuda ou que apoia, atrapalha, oprime. É a dialética dos processos. Nas não aceitações, nas neuroses, os indivíduos querem absolutos sem implicações: querem que os problemas não apareçam, que as boas imagens aplaudidas, por eles conseguidas, se mantenham eternas, que o outro, por eles conquistados, esteja ao seu dispor, à sua mão, aos seus pés. Esse desejo de absoluto, unilateraliza as vivências e transforma tudo no vencer ou vencer para não cair no perder ou perder. Eles não aceitam, não admitem a transformação, a mudança. Pensam que o objetivo é o encaixe, a adaptação, pois acreditam ser o mundo um grande quebra-cabeça que eles decifram ou têm que aprender a decifrar, a adquirir a chave, descobrir a senha, conviver com o mestre, de preferência conquistando-o ou mantendo o infalível amigo. Essa é a pretensão, a busca insaciável. Ter problema e escondê-los, evitar que eles prejudiquem é o objetivo na não aceitação de dificuldades, medos e reversibilidade de processos.

Quanto mais viverem em função do futuro, de resultados, mais desvitalizados ficam ao perceber os confrontos e mudanças que a todo momento acontecem. Vida é movimento, é antítese, não há como permanecer sem mudar. O medo de mudar sem permanecer é o que desorganiza a não aceitação da reversibilidade do estar no mundo, ou do outro como limite. Essa omissão, esse medo inventa absolutos, transforma a multiplicidade em polaridade, criando assim convergências e divergências estranhas, anômalas ao que se processa e movimenta.

Determinar solucionadores das próprias dificuldades, estabelecer o que vai resolver, o que permitirá superação são tentativas de coagular o movimento. É um posicionamento tão violentador do existente que fragmenta, obriga movimentos em outras dimensões, traz pontos em volta de uma órbita, em volta das não aceitações. Querer manter problemas, dificuldades - medos e desejos - em função das próprias conveniências e achar que eles não vão aparecer, ou ser expressos no cotidiano, é ilusório.

Problemas enfrentados desaparecem ao criar novas realidades, novos relacionamentos e reconfigurar comprometimentos e desejos.



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