Anseio e desistência

Ilustração de Svetlin Vassilev para a edição de
Don Quijote, da Colección Cucaña, 2013


Atitudes de heroismo, luta e resistência são frequentes na não aceitação de limites, não aceitação do presente e não aceitação do que pode ser feito pelo outro. Não desistir dos sonhos e dos objetivos, lutar contra fantasmas e moinhos de vento como os supostos por Dom Quixote - herói assolado pelos desejos de paz, amor e harmonia - é o pretexto, a justificativa para manter a não aceitação dos obstáculos que impedem a realização dos desejos. 
 
Dom Quixote é um louco libertário, ao passo que não aceitar a realidade imposta pela doença por exemplo, pela separação não desejada ou acidentes fatais, é se reinventar capaz de juntar os pedaços, o fragmentado de toda uma existência na tentativa de compor algo significativo. Essa aspiração, esse desejo negador do que se vivencia é esvaziante, desconecta o indivíduo de si mesmo, do outro e do mundo. As consequências desse processo oscilam entre persistência para tudo conseguir e para não desistir até a constatação de total vazio, queda e impossibilidade configuradoras da depressão. Deprimir é submergir a outros níveis, cavernas de ilusão nas quais o faz de conta pode ser criado e mantido.

Não existe milagre, é impossível negar o que existe, suplantar o outro negando-o e ao mesmo tempo mantê-lo e senti-lo junto. Esse impossível, o querer a lua como Calígula (para ele, querer a lua era a expressão do impossível) é a contradição entre lucidez e ideia fixa obnubiladora: é o claro escurecido que tem que ser luz esclarecedora e farol orientador.

O não querer querendo é uma das atitudes mais encontradiças na não aceitação da realidade. É atitude tão subvertedora quanto o desejar fazer um omelete sem quebrar os ovos que serão usados no mesmo.

Não há como resistir, como superar problemas quando os mesmos não são admitidos. Percebe-los, negá-los e ser agora um provedor de recuperação, ou de desafio, é a matéria-prima do tédio, das ilusões sonhadas e onipotentes, tanto quanto da destruição do outro (raiva, assassinatos) ou de si mesmo (medo, depressão suicídio).

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