Vida para depois (1)




Deixar para depois, rolar as dívidas, postergar, aguardar o momento oportuno são palavras que sustentam o suposto bom senso e os ajustes caracterizadores dos processos de adaptação. Essas atitudes resultam de metas, expectativas a realizar, frustrações cotidianas, que são vivenciadas ao longo dos dias, ao longo da vida.

Certos momentos como velhice, doença e aposentadoria se evidenciam como “não há mais tempo, é preciso conseguir realizar os sonhos”, os desejos, enfim, as metas de toda a vida. Dessa forma, ansiedade, angústia, vazio caracterizam o cotidiano. A avalanche é tão assídua e forte que surge a doença como forma de estabilizar, de por os pés no chão, surgindo também o cuidar de si à conta gotas e vivenciar se reduz à verificação de que a própria existência está sob controle e que nada acontecerá de abrupto.

Tudo que é adiado consiste no deslocamento responsável por criação de metas, objetivando transformar as frustrações e suprir as incapacidades. É um jogo mentiroso, mais tarde revelado. As vivências de ansiedade, quando não há como deslocar, criam turbilhões esvaziadores. É impossível recuperar o tempo perdido, não há recuperação do que não existe. O perdido se foi, não está salvo enquanto cogitação não realizada. Tentar realizar o não realizado é alavanca da frustração, é o caminho mais fácil para o engolfamento. Este autorreferenciamento exila o outro do vivenciado à medida que o transforma em elemento, em situação necessária e fundamental à realização dos desejos e sonhos aplacadores das não aceitações e das dificuldades.

Aceitar os próprios limites estrutura autonomia em relação aos mesmos, aniquilando expectativas e adiamentos, tanto quanto resgata o presente e possibilita estar no mundo com os outros enquanto possibilidade existencial realizadora de confrontos e de encontros.

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