“Quanto pior, melhor” - Semelhanças e identificações



Continuamente não aceito, desconsiderado e marginalizado, surge, no indivíduo, esperança de camuflagem para conseguir mínimas considerações. Ele tenta arranjar uma segunda pele, consensualmente não aceitável, por acreditar que quanto mais sujo, quanto mais desconsiderado nas esferas social e psicológica, mais conseguirá atenção ao ficar igual ao residual, ao dispensado. É a ideia de quanto pior, melhor. Não ser útil, ser inútil, ser o nocivo que atrapalha, que faz esbarrar e merecer cuidado e atenção. Será considerado pelo mal que pode causar, pelo atrapalho que significa. Causar o mal, ser nocivo, chamar atenção, merecer olhares, é visibilidade, é consideração.

Ser invisível é desumanizador. Preconceitos e restrições criam a capa de invisibilidade e marginalizar-se ou causar prejuízos torna visível, personaliza, deixa de ser o zé mané e passa a ser o perigoso Zé, capaz de atrocidades. Virar alguém, ser considerado, mesmo que como escória e marginal perigoso, significa. O agrupamento de resíduos cria a necessidade de compactar, passa a merecer olhares reprovadores, mas, passa a merecer olhares, passa a existir. A luta por um lugar ao sol, isto é, um lugar na lama que tudo destrói, corporifica, torna visível. Assim se estruturam socialmente os párias, os marginais e também os sobreviventes implacáveis na destruição. Muitas vezes aparecem sob formas sutis, emoldurados por instituições ou pelas benesses conferidas pela riqueza: é a corrupção, o tráfico de drogas, de seres humanos, de órgãos; são os pedófilos provedores de famílias submissas aos seus desejos destruidores.

As identificações que formalizam grupos desconsiderados, criam semelhanças que são verdadeiras redes de impedimentos e impermeabilizações. A motivação para o “quanto pior, melhor” determina, posteriormente, ordens desviantes. Por semelhança os díspares são incluídos socialmente enquanto ameaça e dificuldade. Os processos da não aceitação têm muitos deslocamentos e tudo comprometem, necessário se faz restringir os contextos que possibilitam o florescimento dos mesmos, são cada vez mais urgentes estratégias sociais. Agências de poder, dos currais eleitorais às organizações e políticas aplacadoras, tanto quanto as promessas de paraísos de redenção, configurações polarizadoras de “almas perdidas” exercidas por meio de fé e esperança, de religiões que tudo açambarcam, todas essas promessas podem se constituir em transformação das normas de convivência com o excluído, mas apenas reciclam para posteriores comprometimentos, a matéria-prima excluída, transformando-a em produtos. É o que industrializa a fome e a violência. Não se constituem em estratégias solucionadoras das configurações problemáticas, e também acentuam o “quanto pior, melhor”.

Seres encalhados, sobreviventes decepados por processos sociais e de não aceitação podem constituir poderosos grupos, invasores de idílicas paisagens, que quebram a harmonia e obrigam a criação de novos sistemas de contenção. O que se evidencia a partir do “quanto pior, melhor” são esses grupos homogeneizados, bolsões de destituídos: são os drogados, os ladrões, os matadores. Assim os semelhantes se organizam, surgem identificações e cada vez mais poderosos passam a determinar regras comprometedoras do ir e vir, do viver social, familiar e individualizado. As cadeias estão abertas, não há contenção, está tudo junto e misturado. Sobram grupos organizados para o crime em vários âmbitos.

Em última análise, enxergar o outro - ele já não é mais invisível, ele é ameaça pregnante e constante - é mais uma tentativa de buscar ou querer estar protegido, querer se cuidar, frequentemente nada mais é que estar preso ao medo, à angústia diante do que é perigoso, do amedrontador, do que era antes ilhado e agora assume dimensões continentais.

O pior está estabelecido.



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