Sociedade disciplinar e Sociedade de desempenho

No século XIX e até a metade do século XX se vivia no que se convencionou chamar de sociedade disciplinar. Estruturada na criação da indústria, a sociedade disciplinar substitui a sociedade feudal - predominantemente agrícola -, e se caracteriza pela existência de instituições: hospitais, asilos, prisões, quartéis, fábricas. Nestas sociedades, os indivíduos seguem ordens, executam papéis, enfim, são “sujeitos de obediência”. O grande avatar filosófico da sociedade disciplinar, o que traz a boa nova, é Nietzsche, que ao dizer “Deus está morto” realiza antíteses necessárias aos caminhos da libertação individual.

Produção e acúmulo de capital, na sociedade disciplinar, estão baseados na indústria. Isto mecaniza e exige disciplina, gera proibições, impõe regras e deveres como leis básicas do ir e vir. Não foi à toa que o século XX abrigou os maiores regimes totalitários: Stalin, Hitler, Mussolini, Pol Pot. Seguir a regra, manter a disciplina era o fundamental. Foucault, em todos os seus livros, nos mostra as vigilâncias e punições, regras e dogmas exercidos pelas sociedades disciplinares, cheias de proibições.

Agamben, Baudrillard, em certo sentido Barthes, além de Deleuze, têm muito escrito sobre esta questão embora sempre posicionados em abordagens mecanicistas e reducionistas. Para Deleuze, tudo pode ser enfocado através do inconsciente maquínico, por exemplo. No bojo destas explicações dualistas, surgiram teses que, apesar de insuficientes,  configuram a mudança da sociedade disciplinar para a sociedade do desempenho, na qual o indivíduo fica entregue a ele mesmo, é seu próprio patrão, realizando assim, as demandas do capitalismo neoliberal.

Desde maio de 1968, com o “é proibido poribir” francês, muda-se o eixo polarizante de atitudes e comportamentos. Ter um bom desempenho, ter poder tornou-se regra para o próprio indivíduo. O modelo de regras e deveres da sociedade disciplinar, torna-se modelo deste indivíduo da sociedade de desempenho; é ele próprio quem impõe a si mesmo, regras, disciplinas e objetivos, tanto quanto tem a ilusão de não ter patrão, de ser livre. Tudo vai depender do que se faça, do que se proponha, e então, se é necessário ampliar horizontes: procura-se estudar, viajar, fazer turismo; se é preciso focar na saúde: procura-se academias de fitness, e assim por diante. Protocolos e mega espetáculos caracterizam o contexto do desempenho.

O sujeito age, desempenha para ter poder. Não é por acaso que a palavra de ordem, o hashtag das minorias discriminadas existentes nas sociedades, buscam “empoderamento”. A fragmentação aumenta, pois cada qual luta e cuida de seu quinhão conseguido. A solidariedade diminui, o outro é o intruso que tudo pode ameaçar.

De desempenho em desempenho, chegamos à sociedade do cansaço como é enfocada por Byung-Chul Han, professor de filosofia e autor de vários livros; chegamos no que Jonathan Crary acentua no seu “24/7 - Capitalismo Tardio e os Fins do Sono”: “Quanto mais nos identificamos com os substitutos eletrônicos virtuais do eu físico, mais parecemos simular nossa desobrigação do biocídio em curso por todo o planeta. Ao mesmo tempo, nos tornamos assustadoramente indiferentes à fragilidade e à transitoriedade das coisas vivas reais”; chegamos também no que Zygmunt Bauman conceitua como modernidade e amor líquido. Enfim, chegamos nas aniquilações do indivíduo.

Aniquilar é desumanizar, processo sempre possível caso não haja questionamento e, assim, o ser humano se esgota na necessidade de sobreviver.


verafelicidade@gmail.com

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