Valorização da aparência

A não aceitação de si e das realidades vivenciadas, frequentemente atinge níveis nos quais a vivência de não ser considerado, de não significar, é esmagadora. Comprometido pela sobrevivência, o indivíduo lança mão de artifícios para despistar seu problema - é praticamente equivalente à bulimia (não querer engordar, mas precisar e não conseguir deixar de comer, então vomita, neutralizando assim, o comer).

A valorização da aparência pode ser entendida como bulimia social. A pessoa se sente ruim, se desvaloriza, se sente incapaz, e assim se metamorfoseia, aparenta ser o que não é, esconde o que desconsidera e lhe causa prejuízo, esforçando-se para manter aparências diferentes do que ela é. Pessoas que tudo amealham, que tudo acumulam, por exemplo, de repente exercem atuações generosas e descomprometidas para garantir uma aparência aceitável. Este exercício cria tensão, obriga a estabelecer divisão para manter a sobrevivência e o desempenho. Quanto mais desempenho, mais divisão. Nestes quadros não existem contradições: as situações são separadas - ângulo zero - nenhuma contradição é estabelecida, quase não há sofrimento, pois estes são neutralizados.

Entretanto, com a continuidade do processo de divisão, muita coisa arrebenta: doença, pânico, tédio, tormentos que destróem seus apoios. As famílias abrigam inúmeros exemplos destes comportamentos de membros comprometidos com a manutenção do que consideram harmonia familiar, comprometidos com a continuidade deste empreendimento de vida em comum, por eles muito valorizado e propagandeado como sinal de status e aceitação social, como valor inviolável e absoluto: mães que fecham os olhos a abusos perpetrados contra seus filhos dentro da própria casa; pais que ignoram graves desvios de comportamento seja dos filhos, seja da esposa; vidas duplas em função de interesses afetivos novos ou de demandas profissionais absorventes. Enfim, tudo é mantido na aparência e a vida escorre entre fracassos e vitórias, entre castigos e libertações, esvaziando as relações.

Não havendo mais coisas a remendar, a consertar, tudo é exercido como aparência, mesmo as vontades, desejos, motivações e até autonomia que se estriba no poder e no mando. Vive-se exercendo concessões, tudo é justificado pelo que se consegue ou pelo que não se consegue. Vencedores e vítimas são resultantes deste processo. O mundo é um grande palco onde as histórias contadas, as aparências mantidas, um dia serão desmanteladas.


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