Falta e excesso


Falta e excesso dependem sempre de avaliações, desde que supõem um padrão a partir do qual as mesmas são configuradas. Para Lacan a vivência da falta é a definição do desejo, enquanto para Deleuze é o excesso que o caracteriza.

Neste paradoxo estabelecido entre Lacan e Deleuze, o desejo como a mola, como o propulsor de comportamento é o ponto de concordância entre eles. Desejar o que nos falta é querer mais e mais, não por “carência, mas por excesso que ameaça transbordar”, pensa Deleuze. Para ele somos máquinas desejantes e não vamos nos satisfazer com o alvo desejado, com o supra real, com a transcendência como afirmam o cristianismo e Lacan.

Para nós, desejo é deslocamento do impasse, é a maneira de negar o existente, seus limites e configurações, buscando outros horizontes onde instalados os pontos de fuga - desejos - as realizações aconteçam. A falta ou excesso são iguais se consideramos a realização insatisfeita. Nada há que satisfaça, sobram situações que precisam ser transformadas e diante disto deseja-se outra situação, outra pessoa. Sentir falta de alguém ou alguma coisa é estar insatisfeito, é não aceitar os limites ou abrangência do que acontece. Querer mais é saber-se insatisfeito e acreditar que na variação e na repetição do que acontece se descobre satisfação e bem-estar. Nas vivências de vício-droga, no desejo insaciável de comer e de ter alguém apoiando sempre presente, é muito frequente o desejo transbordante. Nada aplaca, o vazio é imenso.

O desejo se transforma em sinônimo de ansiedade quando de tanto dar voltas e ritualizar o impasse, surge o esgotamento das referências estruturantes do que se vivencia, do presente. Não há para onde correr, só se pode esperar; neste momento se transforma o desejo em espera, em expectativa e assim se cria ansiedade. Acontecer ou não acontecer, viver para que aconteça, não desistir faz com que se comece a funcionar como um buraco negro, engolidor das possibilidades humanas (“Depois que uma estrela massuda queima todo o seu combustível - o hidrogênio - ela acaba se extinguindo. O que resta já não é segurado pelo calor da combustão e desaba esmagado pelo próprio peso, até curvar o espaço tão fortemente a ponto de afundar dentro de um verdadeiro buraco. São os famosos buracos negros.” - 'Sete Breve Lições de Física', de Carlo Rovelli, pag.16)

Desejar é negar a própria realidade, limites e certezas, é querer o que falta, é continuar querendo até transbordar de vazio e insatisfação. Desejar é a maneira mágica, criada pela não aceitação, de estabelecer os pontos de realização, as roupagens da própria identidade que se crê capaz de assim ser aceita e gerar satisfação e alegria.

Tudo se coaduna e integra, as interações existem e são os determinantes do comportamento. Sem avidez não há vivência de falta, nem de excesso. As motivações comportamentais resultam do que se vive, do que se encontra e não do que se espera e precisa. O que cria falta é a vivência dissociada das contradições, tanto quanto o excesso só é configurado enquanto dificuldade e desequilíbrio. Não se aprisionar no que falta ou no que sobra é uma maneira de continuar livre e disponível, sem avaliações redutoras e discriminadoras.



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