Recompensa e ambição

Sentir-se capaz por ter cumprido etapas e conseguido o mínimo de representatividade, é transformado em ter direitos, em merecer cuidados e atenções. Neste posicionamento autorreferenciado, colocando-se como centro dos processos, o indivíduo busca, através do que é justo e “de direito”, suprir suas carências e necessidades. Esta atitude permeia todos os esforços e costura “cortes e remendos”. Na dimensão social, onde tudo é avaliado enquanto “pertencimento” a comunidades, a grupos que significativamente indicam merecimentos e direitos, os reconhecimentos das capacidades individuais são transformados em estratégias dirigidas a outros objetivos - políticos de preferência.

Psicologicamente, quando alguém se sente capaz e imediatamente merecedor de direitos, ele trilha seu caminho relacional oscilando entre impotência e onipotência, flutuando entre ser vítima e capataz. O constante interesse em descobrir pontos fracos nos outros - incapacidades e desejos - é uma arma que lhe permite apoderar-se dos considerados direitos alheios. Isto é bíblico. O prato de lentilhas, desejado por Esaú, fez com que ele abrisse mão da própria primogenitura - direito legal conferido na época aos filhos mais velhos.

Frequentemente ouvimos falar de jovens belos/as e inteligentes que decidem tudo merecer: uns buscam a sedução de ricos/as poderosos/as, outros se envolvem com partidos e associações que recompensam bem os mais capazes e espertos, outros ainda se dedicam à quaisquer ilícitos ou golpes, pois decidem que precisam e merecem o melhor. Processos de sedução geralmente decorrem destas atitudes desesperadamente prepotentes, de pensar tudo merecer. A prepotência é um deslocamento da impotência; quanto maior a impotência, mais se desloca para o faz de conta de poder, para o esforço de conseguir. Pensam a vida como um fardo que precisa ser carregado, bastando esforçar-se; tudo tem que ser obtido e eles têm que ser triunfantes. O exercício desta motivação, transpor obstáculos desconsiderando limites, cria frustração, vítimas, marginais, malandros e até iconoclastas. O outro não importa, o que significa são os meios e técnicas para envolvê-lo, neutralizá-lo, e assim, se apoderar do que pode ser agarrado.

Para quem deseja atingir horizontes de benesses infinitas, as situações se tornam absurdas, principalmente na política, desde que são aproveitadas queixas e lamentações populares para estabelecer pontes de acesso aos merecimentos desejados. Falsas demandas são estabelecidas, direitos são arbitrados e a fragmentação social e psicológica é acentuada em função de atingir o que sempre se acha ser um direito. Situações responsáveis por questionamentos, desigualdade social e econômica por exemplo, são transformadas em manancial de raiva e revolta, geradoras de violência que tudo permite, desde que percebidas como ponte, como condição para atingir os prêmios estabelecidos pelo sistema. Nas ditaduras, é comum pessoas, “cidadãos de bem”, serem cooptados para denunciar, deixar torturar e matar, ajudar a segurança nacional para não serem confundidos com quem é contra a ditadura, com quem é  considerado subversivo.

Incentivar a transposição de obstáculos é colocar metas que transformam o ser humano em máscara, camuflagem das próprias não aceitações. Em psicoterapia, quando o indivíduo lida com suas não aceitações, ele percebe que as mesmas o estruturam, não são obstáculos diante dele; percebe também que só através de constante questionamento, sua percepção das questões que o infelicitam é ampliada e assim possibilidades surgem, neutralizando o que antes era percebido como obstáculo.




- "A condição humana" de Hannah Arendt


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