Erro trágico e peripécias

Tudo que é avaliado, medido implica sempre em erro ou acerto. Certas situações são tão óbvias que delas só deveriam resultar acertos, mas, mesmo quando se tenta "agir corretamente", sem questionamentos e sem globalizações se incorre em erro, que em alguns casos pode ser um erro trágico.

Shakespeare, em o Rei Lear, retrata magistralmente o erro do soberano ao trabalhar com o óbvio e o evidente. Obviedade, evidência são recortes parcializantes do existente, recortes integrados nas estruturas das próprias avaliações (autorreferenciamento). O que se destaca só é globalizado quando percebido em função de seus dados estruturais (presente percebido no contexto do presente). O Rei Lear achava que duas de suas filhas expressavam amor filial quando escolheram o que queriam na divisão de seu reino; a outra filha, Cordélia, expressava desconsideração quando apenas se propôs a receber o que a ela se destinasse, afirmando que o amava "como corresponde a uma filha, nada mais, nada menos". Irritado com esta resposta de Cordélia, ele a deserda, a expulsa do reino e o divide com suas duas outras filhas bajuladoras. Esta atitude do Rei Lear foi um erro trágico, que encheu de solidão e sofrimento a sua velhice.

Todo erro trágico, já diziam os gregos, acarreta peripécias.

As lutas, conflitos e peripécias, muito encontradiças na esfera familiar, decorrem de erros trágicos como por exemplo: casar com o outro pelo fato do mesmo ter tudo que se precisa e logo após o casamento descobrir a falência econômica do escolhido; escolher ser advogado pela conveniência das inserções familiares na esfera do judicial e do poder e ser surpreendido pela instalação de uma ditadura que suspende todo o poder judicial, aprisionando seus titulares; querer ser médico para curar as doenças maternas e descobrir que a mãe está a morrer pelo excesso de trabalho necessário ao financiamento de seus estudos médicos.

Garantir segurança através do exílio do que denuncia ou mostra o erro, é trágico, produz caminhos infinitos, peripécias indignas, valores significativamente transformados em moedas de negociação, como aconteceu com Rei Lear.

A tragédia não é o erro, a tragédia é a conclusão equivocada resultante de parâmetros e carência deslocada, de conflitos não questionados que a determinaram. Geralmente, depois das peripécias a verdade aparece e o erro é superado pela constatação do que o ocasionou. Sofrimento, arrependimento são as vivências, os castigos que resultam de querer salvar o impossível, negar o evidente, utilizar o outro. A perda de autonomia é uma das decorrências que logo surge com o erro trágico e é nesta cegueira que as caminhadas, as peripécias se desenrolam. Neste difícil caminho podem ser construídos heróis, que ao se sentirem salvadores, incorrem em novos erros, acarretando novas peripécias, novos personagens; pode também, ao se saberem heróis, questionar o que os engendrou, recuperando assim autonomia, equilíbrio, disponibilidade.















- "Rei Lear" de Shakespeare
- "O nascimento da tragédia" de Friedrich Nietzsche


verafelicidade@gmail.com

Comentários

  1. "Sofrimento, arrependimento são as vivências, os castigos que resultam de querer salvar o impossível, negar o evidente, utilizar o outro".
    É, Vera! Conheço uma pessoa que insiste em transformar erro em acerto a qualquer custo e o resultado é arrependimento atrás de arrependimento. ;-). Adorei o artigo!
    Milena

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    Respostas
    1. Pois é, Milena, terapia é uma profilaxia pois ao questionar o autorreferenciamento impede distorções responsáveis pelos “erros trágicos” além de possibilitar globalizações reestruturadoras. Beijos, Vera

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