Trunfos, amuletos e contra-egun

Estar no mundo, deparar-se com o inesperado, com perigos e dificuldades, gera medo ou no mínimo insegurança e apreensão. Deter-se nesta vivência leva a questionamentos que permitem que o indivíduo descubra mudanças em sua percepção: o percebido pode se tornar libertador, as dificuldades podem significar confrontros esclarecedores e o inesperado é o novo que sempre questiona; entretanto, quando voltados para manutenção de situações e conquistas, se evita, se foge do que não está sob controle, mas se sabe que o imponderável, o fora de controle existe, isto amedronta e o individuo busca proteção.

No afã de tudo garantir, são criados locais blindados pela proteção da família, de amigos, pela garantia do dinheiro, dos amuletos, do poder e de estratégias. São os trunfos, que vão desde "o sabe com quem está falando", "o dinheiro tudo resolve" até "não mexe comigo que eu não ando só".   

Pensar que a vida está garantida através do exercício de recursos e estratégias, compromete, neurotiza. A necessidade de garantia e certeza constrói duplos, seres inseguros que só se mantém amarrados aos seus pedestais de compromisso, crença e ilusão. A imobilidade assim conseguida, estratifica: vitoriosos e fracassados, ricos e pobres, protegidos e prejudicados passam a ser os determinantes das cogitações relacionais.

Neste universo organizado pelas significações aderentes, surge o homem temeroso, oprimido pela necessidade de bons resultados. E assim, crenças, trunfos, amuletos, contra-eguns* são decisivos, são a proteção para enfrentar a considerada selva, proteção para sobreviver.

Voltar-se para o além daqui, para o ainda não vivenciado, criando expectativas, transformando tudo em indicações, é abrir mão da liberdade; é circunstancializar-se subvertendo a dialética das próprias vivências: o sim é o não, o não é o sim e nesta alternância a instabilidade se torna constante, permitindo condição de mudança, de flexibilização, puramente ilusórias.

Proteger-se é bom, é salvador, mas também pode ser aniquilador, no mínimo a autonomia é substituida por rituais sociais e religiosos.

Autonomia só é possível como resultante da satisfação de estar entregue a si mesmo, no mundo com os outros.

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* No Candomblé de tradição yorubá, contra-egun é a palha da costa tecida e colocada na parte superior do braço e cintura, usada geralmente após a iniciação no Orixá como proteção contra os espíritos (egun).
















- "El Monte" de Lydia Cabrera
- "Mitos, emblemas e sinais" de Carlo Ginzburg


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