Solidão

Estar só, sem alguém para namorar, para conversar é problemático para muitas pessoas. Imediatamente é desencadeado o processo de procurar alguém ou de manter um relacionamento que se considera desagradável. Poucos se questionam sobre o que aconteceu ou acontece para que se fique só.

Se o outro é percebido e usado como objeto, sobrevive-se, aliena-se, coisifica-se. A não aceitação estrutura deslocamentos, metas criadoras de vazio. Este vazio - carência afetiva como necessidade de relacionamento - gera demandas, faltas, fome que tem de ser saciada.

Algumas avaliações são nítidas neste processo: tudo foi conseguido, a vida está estabilizada, falta apenas um relacionamento que gere prazer ou, falta a realização de desejos e demandas ou, precisa de ajuda, é necessário um relacionamento, alguém participando, ajudando ou ainda, sozinho o despropósito é completo, urge um relacionamento.

Nestes casos o outro é sempre um objeto, é necessário ou é suporte. Esta visão coisificadora do outro é causada pelo despropósito da própria existência. Não se sabe quem  é, não se percebe a si mesmo como um ser no mundo, se percebe com valores, territórios a defender, situações a manter.

O sobrecarregado precisa de ajuda, o esvaziado procura motivação nas companhias, o entediado busca prazer.

Só existe solidão quando o outro é percebido como um instrumento, quando é resultado das próprias demandas e carências. Nestes casos a solidão permanece quando se está acompanhado pelo outro ou entregue a si mesmo. Solidão não é falta de companhia, solidão é o vazio resultante da transformação da carência afetiva - possibilidade de relacionamento - em necessidade de relacionamento.

O outro não pode ser necessário; quando isto ocorre ele é destruido, transformado em objeto de prazer, segurança ou cuidado.

O outro é o possibilitador, mesmo que acidental, despropositado e intangível.




- "Cem Anos de Solidão", Gabriel Garcia Marquez
- "Livro Das Mil e Uma Noites"

Comentários

  1. Vera,

    Adorei muitíssimo o tema, o texto,tudo!!!.Logo lembrei de uma das suas "profecias" ... "As vezes certas trajetórias são armadilhas.." Quantas armadilhas armamos contra nós mesmos, por pura neurose, não é?!."...Solidão não é a falta de companhia solidão é o vazio..."bjos.

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  2. Vera,
    Esqueci de me identificar no comentáro que fiz a pouco.bjos Ana Cristina

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  3. Perfeito, Vera.
    Tudo a ver comigo.
    Se solidão fosse falta de companhia não existiria solidão a dois, solidão em grupo .... É mesmo o uso do outro para aplacar nossas necessidades e assim, desumanizados, nem percebemos o outro verdadeiramente, não há relacionamentos de fato, há troca de demandas.
    Obrigada.
    Bjs,
    Ioná.

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  4. Gostei Muito Vera. Parece que no sentimento de solidão o tempo para. A mágica de parar a impermanência. Como pode se a vida é fluxo? Gabriel Garcia Marques descreve isso no seu tratado literário sobre a solidão: "Que se há de fazer – murmurou – o tempo passa. É verdade – disse Úrsula – mas não tanto. Ao dizê-lo teve a consciência de estar dando a mesma resposta que recebera do Coronel Aureliano Buendía na sua cela de sentenciado e mais uma vez estremeceu com a comprovação de que o tempo não passava, mas girava em círculos." E mais adiante: "Ambos descobriram ao mesmo tempo que ali sempre era março e sempre era segunda-feira, e então compreenderam que José Arcádio Buendía não estava tão louco como contava a família e sim que era o único que dispusera de lucidez bastante para vislumbrar a verdade de que também o tempo sofria tropeços e acidentes e podia, portanto, se estilhaçar e deixar num quarto uma fração eternizada."

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  5. Ana Cristina, Iona e Augusto, obrigada pelos comentários ampliadores de meu artigo. Abraços

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  6. Olá Vera, desde que li sua afirmação "o ser humano é possibilidade de relacionamento" uma grande mudança aconteceu em mim. Esta frase veio de encontro (antítese???) a uma sensação de separação e isolamento que eu tomava como definidora porque era tão básica e fundamental. Para mim era a condição da existência de todas as coisas (e seres): ser única, separada, individualizada. Sempre procurei leituras com este tema e claro, existem todas as filosofias (principalmente orientais) e religiões etc afirmando a unidade, usando a metáfora das ciências que encontram elementos comuns a tudo (atomos, células etc), mas... a sensação era de solidão existencial. Além deste artigo "Solidão", reli agora, "Carência Afetiva" no seu primeiro livro e entendê-la como intrínseca, como "possibilidade de relacionamento" é maravilhoso. Obrigada por mais este artigo, por estar sempre possibilitando novas sínteses.

    Abraço

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  7. Vera,

    Lembro-me de quando falamos sobre a carência ser intrínseca ao homem e o insight que tive naquele dia. Entendi a diferença de se relacionar por possibilidade e por necessidade. A própria relação com a terapia me fez entender que pode haver estrutura sem apoio, que só há transcendência quando se está inteiro, sem querer preencher buraco; que só assim se percebe o outro. Hoje, por mais sozinha que esteja, são bem menos os momentos em que sinto solidão e sei que nesses momentos é a necessidade de aplacar vazio, ou o medo e o não acreditar na minha capacidade que me dominam. Sinto-me muito mais forte e inteira, tem gente que acha que fiquei fria, mas sei que não é isso. Tenho descoberto a liberdade que é estar sozinha e não sentir solidão e sei que isso veio totalmente da terapia. Lindo texto, amei. Explicou muito sobre o que vem acontecendo comigo.
    Beijos.

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  8. Penso que sempre existem dependências nos relacionamentos, o que caracteriza a possibilidade da saúde na relação é a dependência como processo para a independência, para maturidade. Ex o bebê necessita depender da mãe inicialmente para que progressivamente atinja a maturidade. Portanto é uma questão de definição do conceito.
    O sentimento de solidão é da ordem do vazio.
    O seu texto é esclarecedor , tratado de forma simples e leve diante de um tema tão controvertido e complexo. Importante tb que o texto oferece margem para discussões.
    Parabéns, bj

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  9. Ana, obrigada por lembrar a questão da carência afetiva. Ser carente é ser humano, transformar esta condição em uma ferramenta, um instrumento para se relacionar é um dos aspectos característicos da neurose, da desumanização.

    Abraço

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  10. Oi Natasha, bom que você colocou a base, o fato de se aceitar como estruturante das possibilidades relacionais. A percepção de si mesmo e do outro, muda; as avaliações de certo, errado, devido, indevido, desaparecem: "Tenho descoberto a liberdade que é estar sozinha e não sentir solidão..." como você fala.

    Beijos

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  11. Oi Suely, acho que é você pela continuação do seu comentário sobre dependência feito no Facebook. Para mim o ser humano é simples, para Freud, ele é complexo.

    Existe dependência afetiva quando a possibilidade de relacionamento é transformada em necessidade de relacionamento. A carência afetiva é intrínseca, faz parte do humano tanto quanto olhos, nariz, boca. A relação do bebê com a mãe enquanto alimentação, sobrevivência, esgota-se em si mesma, não é a origem evolutiva dos processos psicológicos como acredita a psicanálise. Esta visão reducionista apoia-se na idéia de todo como soma de partes, lida com instintos e princípios homeostáticos. Independente de ser um bebê, de ter 1, 2 ou 3 anos etc a carência afetiva estrutura necessidade de relacionamento ou possibilidade de relacionamento.

    Como eu escrevi no artigo que você comenta: "Se o outro é percebido e usado como objeto, sobrevive-se, aliena-se, coisifica-se. A não aceitação estrutura deslocamentos, metas criadoras de vazio. Este vazio - carência afetiva como necessidade de relacionamento - gera demandas, faltas, fome que tem de ser saciada."

    Só existe solidão quando o outro é percebido como um instrumento, quando é resultado das próprias demandas e carências. Nestes casos é muito comum as distorções e vivências de solidão como dependência não satisfeita e vazio.

    Beijos

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  12. Concordo com v. mas não estou apostando na postura reducionista, esta seria apenas uma das variáveis, mas ainda assim estaríamos falando em necessidades.
    Quanto ao seu último parágrafo sobre a solidão cabe realmente a utilização da idéia de instrumento...
    obrigada,
    bj
    Suely

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  13. Oi, Vera!
    Duas frases sobre solidão me chamaram atenção no livro Amrik, da Ana Miranda: logo na introdução, "Ser livre é, frequentemente, ser só", de Auden e " A dança é um desejo de solidão", na fala de Amina.
    Entendo perfeitamente a liberdade que é estar sozinha e não se sentir só. Já o desejo por solidão me assusta um pouco.
    Sendo a carência afetiva intrínseca ao ser humano, entendo que esse "desejo de solidão" ou necessidade de estar só revela neurose tanto quanto a necessidade de relacionamento, correto?
    Ambos aspectos negam a possibilidade de relacionamento do ser humano, não?
    Adorei o texto.
    Beijos,
    Milena

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  14. Oi Milena,

    "Ser livre é, frequentemente, ser só" este pensamento considera liberdade como algo físico, denso, que ocupa lugar no espaço; mistura tembém o estar só espacialmente, com estar livre, é confuso. Desejar a solidão é literário, geralmente significa que se está com desejo de não estar comprometido.

    Qualquer necessidade de relação é carência afetiva não assumida, não aceita, transformada em instrumento para o relacionamento.

    Nada nega a possibilidade de relacionamento, apenas neutraliza, distorce; se não fosse assim não seria possível terapeutizar, transformar os estados considerados neuróticos.

    Beijos,

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  15. Perfeito, Vera!
    Obrigada!
    Beijos,
    Milena

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  16. Olá Vera e MIlena, adorei o diálogo de vocês. Fiquei pensando nos estados meditativos e nos estados que entramos quando da criação ou performance artística, momentos de introspecção, aparente solidão, mas que na verdade são de imersão ou comunhão como afirmam algumas filosofias indianas. Até entendo, Milena, no Ocidente, o sentido da frase "a dança é um desejo de solidão", mas em outras culturas (Indiana, por exemplo), a dança é a expressão da comunhão, é 'religare', é religião no sentido literal da palavra. Dizem os indianos que a dança de Shiva é o universo, se ele para de dançar, o mundo finda. Quanto a questão da liberdade, bem, os indianos são extremamente radicais: liberdade é "aloofness", só no nirmava, kaivalya etc. O conceito de relação no pensamento de Vera é muito fértil para pensar estes assuntos; gosto muito.

    Abraços

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  17. Ana, Gostei da amplidão de situações que você coloca. O conceito de imersão/comunhão, meditação são parcializações resultantes da idéia de interno, externo, objetivo, subjetivo. A dança de Shiva, pra mim, é uma idéia figurada do movimento existente em tudo, é a dança das partículas. Liberdade, como quebra de contingências, é uma maneira de tentar unir o que foi por eles, filósofos e pensadores indianos, dividido.

    Abraços

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  18. Você tem total razão Vera, as filosofias indianas são dualistas. Cada uma conceitua meditação de uma maneira ('comunhão' no Vedanta, 'parada' no Samkhya, 'mindfulness' no Budismo etc) e até onde conheço, todos partem do dualismo fundamental entre 'matéria' e 'não matéria'; às vezes até transcendem dulismos comuns entre nós como o clássico mente-corpo, mas o dogma fundamental permanece. E afirmam que a matéria só existe em movimento, daí o que você diz é perfeito: a dança de Shiva é metáfora para o movimento, na linguagem deles: para a impermanência e na matéria, tudo está conectado a tudo. É como se os indianos tivessem uma nostalgia do estado de não-matéria, para eles o estado de liberdade; sentem-se presos na matéria; como você diz, resultado de divisão. O que gosto no seu pensamento, Vera, é exatamente ele ser mais "redondo", coerente e obviamente gosto também da resolução dos dualismos… mas, enfim, são contextos diversos apesar das filosofias indianas serem classificadas por alguns como "psicofilosofias".

    Obrigada e abraço

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  19. Ana,
    São realmente muito bons os diálogos com Vera e sua contribuição para isso não passa despercebida.
    O maravilhoso de Vera é que ela consegue unificar tudo.
    Vida é movimento! E o movimento livre e perfeito só é possível quando se é inteiro, um.
    Abraços,
    Milena

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  20. Concordo com o que você diz sobre o pensamento da Vera, Milena e obrigada pelo que você falou de minha contribuição.

    Abraço

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  21. Magnífico texto, Vera.
    Isso me lembra de um amigo que dizia que para se viver com alguém é necessário aprender a viver só, com seus próprios fantasmas. Se você não consegue conviver consigo mesmo, que dirá com outra pessoa que tem outras carências e outras demandas.

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